domingo, 27 de janeiro de 2013


Um dos meus hábitos quando saio para a rua é observar as pessoas que se cruzam comigo. Sempre que o faço há uma pergunta que irrompe no meu espírito: "Qual é o segredo delas para suportarem de forma tão silenciosa o vazio que se reflecte nos seus olhos?"
Começa a ser crónico… não há um único dia em que eu não pare para observar o mundo à minha volta e diga de mim para mim que já chega disto, que já está tudo visto, que viver é a repetição intermitente de espaços comuns.
Tornou-se tudo tão mecânico, tão artificial, que a própria barreira que separa a fantasia do real se tornou invisível. Eu bem a procuro, calcando os pés no chão, na esperança de encalhar nela e nada. Também já lancei os olhos ao mar horas a fio, ao ponto de ficarem azuis, e lá só vislumbro uma linha curva que vai desembarcar em lado nenhum.
Tem de haver uma saída, uma porta, uma janela, ou mesmo uma fenda minúscula que me permita vislumbrar o espaço que povoa o imaginário dos livros. Mas é como se eu fosse a única que tem consigo a verdade e não a possa transmitir ao mundo por ter a voz demasiado presa, embargada pelo choro contido na garganta.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Dizes: - “cheiras a incenso!”
E eu digo-te que a tua voz exala o odor quente da morfina.
E bebo dos teus lábios esse eterno demónio do fingimento,
que me leva para o oriente do teu corpo no meu corpo.

A noite traz até ao nosso abismo
a fragrância da volúpia que adivinho das tuas mãos.
Inspiro-a, golfada após golfada e digo: - “cheiras a morfina!”

E o incenso do meu corpo estala em sulcos que
percorres com o mármore dos teus lábios.
Estremeço; mas agarras a minha garganta
e transbordas em mim a lava da tua malícia de que bebo avidamente.

Estou impregnada do veneno da tua essência;
e num abraço violento rasgo em ti a alma
para que possa cobrir-nos com ela.

Mas o efeito da morfina já escasseia
e o palco da nossa lascívia evapora-se
e quando dou por mim, nunca lá estiveste.
Mas nas paredes do meu quarto a tua voz ressoa, dizendo:
- “Cheiras a incenso!”


domingo, 11 de março de 2012

Eu quis que assim fosse:
Lição importante.
Eu e mais ninguém.
Esta cama em que me deito
foi feita para meu proveito...
mas por quem?
Não sei porque o quis,
mas não foi para ser feliz.

O caminho estava por escrever
até eu me perder no dos outros
que julgava conhecer.
E se hoje não há trilho,
ficou pelo menos no olhar o brilho
da esperança que teima em viver.


sábado, 5 de novembro de 2011


Procura dentro de ti...

Entre espíritos diversos se busca a verdade,
mas de que se trata tão pesada realidade?
O que podes tu, alma e carne impura, buscar às malhas da morte?

Vive e busca a tua sorte!...
E deixa de procurar sentido na destruição.
Busca dentro de ti a razão
e deixa a vida ser vivida pelas leis do teu coração.

Procura as respostas dentro de ti;
Procura nas teias do pensamento a tua paz
e deixa que os obstáculos se deitem no leito do esquecimento
e que o teu espírito alcance o entendimento.

Questiona a vida e o seu sentido,
mas não queiras fazer disso a tua razão.
Busca respostas ao interior do teu ser,
que tem como dádiva a liberdade de viver.
Não te deixes pelos obstáculos esmorecer,
porque ao longo do teu percurso muito há ainda a sofrer.

Comete erros, não tenhas medo de errar!
Não tenhas medo de falhar!
Na vida há tempo para tudo...
Há tempo para amar,
há tempo para chorar e pensar!

Reflecte na vida, mas dela não te escondas!
Questiona-a, estuda-a e contraria-a,
Mas nunca abdiques de existir!
Pois a virtude está em lutar!
A virtude está na tua capacidade de sonhar...

Não penses mais na morte como uma libertação,
pois ela não é mais do que uma mera ilusão.
Não é morrendo que te tornas vencedor,
mas sim sobrevivendo às malhas do desespero.
Não queiras jamais te deixar iludir,
não deixes jamais que a morte te invada!
Não passes os dias a fugir...

Luta contra o mundo, mas luta!
Sonha alto, não tenhas medo de cair!
Não te contentes apenas com o sonhar quando podes também possuir!
Luta pela liberdade,
procura um porto de austeridade.
Olha bem para dentro de ti e sente o vazio...
Preenche esse vazio!
Ilumina esse coração que há tanto tempo se encontra frio...
Não penses mais na morte.
Pensa sim na vida!
Não te deixes cair no esquecimento
e muda esse sabor de descontentamento.
Faz da vida o teu posto de permanência
e verás um dia o quão valiosa é tua existência...


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Não sei bem para que serve este mata-borrão... mas senti uma necessidade tremenda de escrever, como se fosse um desejo primário das minhas entranhas.
Sei que não se trata de uma nova necessidade. É apenas o reacender de um braseiro extinto há algum tempo... há demasiado tempo.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Um dia acordas e apercebes-te de que nunca deixaste de estar sozinho. Todas as pessoas que conheceste, que tens por perto quase diariamente, são apenas imaginação da tua cabeça, uma ilusão que criaste e ao qual te agarraste para não caíres no abismo que sempre tiveste aos teus pés. Nesse momento uma necessidade diferente instala-se: sair de casa e apanhar o primeiro comboio para o mais longe possível dessa ilusão, mesmo não tendo um tostão no bolso. Só queres estar longe, desaparecer, vaguear como o fantasma que nunca deixaste de ser... até ao momento em que acabarás por deixar de respirar.

quarta-feira, 20 de julho de 2011


Sou submissa à minha dor
Vassala nobre de melancólico esplendor
Vestindo o negro formal
Da antiga viuvez medieval

Sou princesa em palácio de cristal
De olhar claro enternecido
Pela palidez emocional
Do meu corpo adormecido


quinta-feira, 2 de junho de 2011


Pudesse eu vislumbrar as noites com a mesma clareza dos dias
e distinguir nas sombras o limiar entre a loucura e o sonho...
Seria tão mais eu quanto sou hoje
e dormiria aconchegada sobre a leveza desta tristeza
sem segredos nem embustes.

No entanto foge-me o chão debaixo dos pés
e os sonhos misturam-se com a neblina dos medos,
num cenário de frescura onírico
como os dos contos de fadas sem finais felizes...

Hoje não me conheço e ontem não me lembrei de ser quem sou.
Por isso perdi-me na insónia do caminho
e morri à sede em frente da fonte do presente
à espera de vislumbrar nela o reflexo do futuro...

Tornou-se tarde como as tardes em que tardei
e o comboio partiu ao longe sem mim.
A vida não espera por quem lhe pede tempo para a conhecer
e foge ao sentir a estagnação das águas no corrimento dos rios.

Eu estagnei por instantes
quando olhei para trás e temi o trilho do caminho.
Estagnei por instantes de olhos fechados ao ouvir a diligência dos condenados ao longe
e não me apercebi que a condenada era eu...

Quando abri os olhos vi-me sozinha
e o caminho já de lá desaparecera
na poeira que o levou por entre o rodopiar da diligência
e o comboio ao longe seguiu sem uma última chamada.
 

in Resquícios de um conto inacabado
Ana Limão Ferreira, Edium Editores